O Orbe de Reidhas, Spin-off #1 | Capítulo XXXIII


XXXIII

Lílian não precisou andar muito para encontrar o “ninho”. Um corredor e uma porta – que derrubou com um chute.
Sabia ser rude como Lyra, apesar de não gostar. Revelava esse lado apenas quando estava realmente irritada – o que era raríssimo.

A verdade era que tudo lhe tirava do sério. Aquele lugar, o propósito ao qual servia. O fato de as pessoas esconderem bases secretas onde criavam armas de destruição em massa.
O fato de esconderem esse tipo de arma embaixo de escolas.
Lílian foi criada sob os princípios de Raikou Thrower, que eram fortes. E humanitários, talvez demais. Tais princípios faziam tudo que estava passando nos últimos dias ser algo intragável, repulsivo.
Como as pessoas podiam ser assim? Por quê?
Mas aquele não era seu mundo. Não possuía autoridade, não podia mudar as coisas ali. Isso a deixava mal, sentia-se inútil, impotente.
Sentia-se fraca. Apesar de toda a energia que ainda circulava em suas veias. Apesar de toda a força que ainda tinha para puxar a corda daquele arco forte.
Retesou a corda e a luz clareou seus olhos verdes. Soltou-a e a flecha atingiu o teto perto da saída secundária, bloqueando-a.
Ela nunca terminaria aquilo. O lugar era grande demais, havia autômatos do chão até o teto, mais do que poderia contar.
E havia ainda aqueles que já estavam despertos, e que não puderam sair. Lílian tinha a vantagem da distância e da mira perfeita.
Mas eles eram rápidos. Quase tão rápidos quanto ela.
Lílian mal puxou a corda, um autômato igual àquele que destruiu na sala de Pyro surgiu a seu lado, com uma mão em forma de espada. Ela abaixou para desviar, e a máquina cortou uma mecha de seu cabelo.
Ela usou a Sellphir para tomar distância, mas aquela criatura era mais esperta. Não deixava que Lílian puxasse a corda, ou mirasse. Corria até ela num piscar de olhos, e ela tinha que desviar.
Lílian então colocou o arco nas costas, mudando a tática. Tomou mais distância e esperou o ataque. Sua visão era apurada o suficiente para prever a velocidade do autômato, e com batidas dos pés no chão, ela ergueu estalagmites, que não o pararam, mas atrasaram.
Ela aproveitou a distração para desaparecer e surgir atrás do autômato. Com a mão direita, apertou seu pescoço. Passou energia para a mão e explodiu a ligação principal.
Mas isso teve seu preço.
Lílian se reprimiu pela própria falta de atenção. Esqueceu-se que havia mais deles ali, estava preocupada demais em derrubar aquele que oferecia maior perigo, e então…
A dor perfurou um instante depois da espada de aço entrar em sua carne. Perfuração limpa, nas costas. Ela podia ver a ponta ali no abdômen. O autômato tirou-a, visando mais um golpe.
Mas Lílian desapareceu. E desta vez, não se distraiu.
Quando o autômato deu conta de sua presença, ela já tinha mirado. Certamente ele pensou que Lílian cairia com aquele golpe, mas estava errado. A flecha saiu do arco e acertou a garganta em cheio, logo em seguida explodindo.
Ela largou o arco e levou a mão ao ferimento, que sangrava mais do que ela queria. O processo de cura que iniciou não seria eficiente, não com a pressa que estava. Mas serviria para parar a hemorragia interna.
Porque ainda havia um ninho inteiro para destruir.
Lílian notou que o general não estava junto com Lyra. Outra sala, logo abaixo dela. Procurava algo, desesperado. Havia um autômato atrás dele. Ele tinha um plano, claro que tinha. Não estaria ali sem chances de vencer… o que eles faziam ali antes? Armas de destruição em massa, não era? Será que ele queria explodir tudo? Isso enterraria o problema todo de uma vez só, e àquela profundidade, seria definitivo.
Seria perfeito se Chris, Cat e Lyra não estivessem lá embaixo também.
Ela deveria fazer algo a respeito disso.
Mas já era tarde.



Lyra fechou a mão ao redor do cabo da espada curta, observando bem seu oponente.
— Vamos lá coisinha. Eu preciso salvar Chris.
Lyra tinha a impressão de que a coisa lá com Luce seria mais para reunião de família do que batalha, por isso deixou Chris ir sozinho e desarmado. Porque ele criou Luce. Conhecia-o como a palma da mão.
Assim como ela conhecia cada entalhe daquele par de brincos que forjou. Esperava que eles estivessem intactos na caixinha de joias de Liv, na casa dela.
Sinceramente esperava isso. Assim como esperava sair dali viva. De um jeito ou de outro sairia, não era?
Afinal, ela era protegida pelos deuses. Aqueles mesmos que fizeram seu pai e seu tio de avatares. Se ela tinha aquela marca, isso significava que não morreria ali.
E que voltaria pra casa.
E que cumpriria seu destino.
Destino. Ela precisava cumpri-lo a risca? Ele já estava decidido? Ou ela o construía a cada escolha errada que tomava?
Não sabia dizer. E não procurava resposta para nada daquilo também.
Só queria destruir aquela coisa e curar as feridas direito. Ouvir Theo dizer que ficou preocupado, rir da expressão dele. Dizer que ficaria bem… e…
O autômato fez um movimento, e a espada dele quase a acertou. Lyra a bloqueou com a sua, fazendo faíscas desprenderem. Sentiu que seu aço cederia em breve, e soltou o bloqueio, pulando pra trás.
A máquina a seguiu, desferindo estocadas seguidas, que Lyra conseguia desviar por muito pouco. Foi atingida de raspão uma vez no rosto e outra no braço ferido.
A diferença entre eles era clara. Lyra se cansava, sangrava e sentia dor. Ela precisava usar algo que o matasse de uma vez só… como Estorvo fez aquilo? Ele atirou no pescoço daquela coisa, e ela completou com magia.
— Claro, sua burra. – disse para o cabo da espada.
Alguma coisa fluía da cabeça para o resto do corpo, isso era óbvio. Como podia ser tão lenta? Lyra revirou os olhos e desapareceu.
O autômato sumiu antes que ela surgisse, e ela não soltou a energia da mão. Claro que esse aprendeu com o irmão morto, e não cederia espaço. Lyra cuspiu um impropério. Precisava ser mais rápida que ele, ou…
A ideia fez Lyra sorrir. Podia por aquilo em prática.
Ela desapareceu, escondendo-se atrás de um emaranhado de fios. Seu oponente correu até ela e golpeou tudo, pouco se importando se cortava cabos vitais ou não. Lyra saiu de lá, desaparecendo novamente.
— Estou aqui, lata desgraçada – ela rodou a espada na mão, e o autômato se preparou para correr.
Nunca chegou a realizar a manobra. Uma esfera de energia brilhou em sua nuca, e explodiu, separando a cabeça do corpo.
— Muito bom, muito bom. – Lyra saiu de trás dos fios. Esteve sempre ali, o tempo todo. Fez seu clone desaparecer com um estalo. – Mas consome energia demais. – suspirou.
Logo se recompôs, e passou pela porta correndo.
Sentia que precisava encontrar Chris o mais rápido possível.



Aquela já era a terceira sala que revirava e ainda não encontrou nada que poderia usar. As outras duas não possuíam nada muito eficiente. A segunda, talvez… havia combustível líquido em uns galões. Mas não havia nenhum gatilho. Nada que encadeasse a maldita explosão.
Naquela espécie de base sempre havia mecanismos de destruição, para enterrar as provas de toda a ação caso algo vaze, ou em caso de ataque estrangeiro. Mas McMillan não sabia onde estava e como era. Só ouviu falar.
Essa falta de informação o deixava louco. Revirava mesas abandonadas, com rastros de sangue. Olhava armários cheios de coisas de nomes difíceis, procurava, e nada.
Nada.
Saiu da sala, era inútil. Correu para a próxima. Porta dupla de metal, tranca forte. Teve que gastar duas balas nela para que abrisse. Entrou correndo, e as luzes acenderam automaticamente.
Como nas outras salas, havia marcas de sangue e coisas reviradas. Mas aquela era muito diferente das outras.
Bem ampla, com uma cabine de vidro ao centro. Tecnologia mais avançada do que estava acostumado, e vidros de toda forma e tamanho. Roupas especiais estavam penduradas na parede.
Era uma sala de experiência, e Johannes não quis saber que tipo de coisa eles faziam ali.
Um barulho metálico chamou sua atenção, e ele se virou para ver um autômato entrar, aparentemente furioso. McMillan atirou duas vezes, e ele desviou das duas balas.
A terceira e a quarta balas atingiram em cheio, quase que a queima-roupa.
Porém, elas ricochetearam no metal.
Johannes não esperava por isso de modo algum, e muito menos a dor que lhe atingiu a perna. Atingido pela própria bala, quem diria?
Conhecia aquela dor, ah, sim. Não era o primeiro tiro que levava, com o tempo se acostuma. Mas seus movimentos estavam limitados, e o autômato ainda estava inteiro.
Ele era menor, não tão perigoso quanto aqueles de Lyra, mas suas balas não atingiam o metal. McMillan tentou correr, mas coxeava. Tropeçou num fio qualquer, e caiu. Virou-se de costas para mirar, e acertou a garganta do autômato.
Abriu um buraco, mas não o matou. Então atirou de novo, e na terceira vez, ouviu um clique seco.
Quase perdeu o controle ao ver que estava sem balas, mas a máquina caiu em cima dele, parada. A segunda bala foi suficiente.
Johannes tombou a cabeça pelo peso, e pôde ver algo escrito numa caixa vermelha.
Sistema de descontaminação, era o que dizia.
Os olhos verdes do general saltaram. Era aquilo, aquele botão iniciaria um incêndio controlado dentro da sala, e quem estivesse dentro dela virava carvão em segundos. A incineração só acontecia em ambiente selado para evitar que tudo exploda.
A porta estava muito bem arrombada, e havia combustível naquele andar. McMillan sorriu.
Tirou o autômato de cima do corpo de qualquer modo, e quebrou o vidro da caixa vermelha.
Dane-se a garota, Fairmount, Hemingway, dane-se sua própria vida.
Viu o botão negro que parecia normal.
E rindo, o apertou.


Claro, se Luce queria reconstruir o mundo, deveria destruí-lo primeiro. Ele era uma máquina poderosa, mas muito previsível.
— E é para isso que quer os cilindros? Usá-los como explosivo? – Chris fingiu interesse.
— Também. Se eu usar todo o potencial – Luce pareceu ter empolgado. – eu posso sem querer destruir você, já que é humano. A carne é muito frágil… então usaria só um pouco. Mas eu preciso dos três cilindros para que tudo funcione. – sorriu, como uma criança.
Chris assentiu.
— E então outra parte da energia eu incorporaria, para me fortalecer. Então poderia criar mais cópias, melhores até que aquele que me trouxe Catherine. Esses são muito bons para combate, mas os magos ainda conseguem destruí-los. – fechou a mão em punho.
— Você poderia ter roubado os cilindros discretamente, mudando sua forma. – Chris começou a andar. – Poderia ter se infiltrado, ter feito tudo isso sem que eu soubesse, sem que ninguém soubesse. Então por que todo o tumulto?
— Eu queria… chamar sua atenção. E já começar a destruir todos esses humanos tão… vis. Foi aí que encontrei os magos, que soube deles. Eles são um perigo, um risco sério aos nossos planos… foi por isso que só ataquei hoje novamente.
— Estava…
— Criando modelos novos e mais fortes. Que ainda são inúteis. Mas é só uma questão de tempo… já consigo controlar alguns elementos, veja.
 Luce esfregou o dedo indicador com o polegar, como Lyra sempre fazia para intimidar Chris. E assim como ela fazia, faíscas surgiram entre um dedo e outro, quando os separou.
— Mas não passa disso. – suspirou. – Só mais alguns dias, pai.
Chris estava louco ou… Luce pensava mesmo que ele estava de acordo com tudo isso?
— Mais alguns dias? Não, Luce. Não posso permitir isso. Não posso deixar que destrua Rhenium Valley ou o resto do mundo.
— Por quê? Eles fizeram mal a você, pai. Todos eles… eles fazem mal uns aos outros, eles mudam cursos de rios para construir, eles sujam águas, eles destroem florestas, eles… eles não merecem viver, eles…
Eles criaram você.
Luce o olhou.
— Não… você me criou. Você me deu vida, é diferente… você não é mau.
— Claro que sou. Eu sou humano também, filho. – Chris se aproximou, tocou os ombros dele, o olhou nos olhos. – Eu também sou um deles – sussurrou. – todos nós temos bem e mal em nossas almas, e não há nenhum pensamento completamente puro ou completamente pecaminoso… as mesmas pessoas que você quer destruir… as que já matou… havia pessoas boas como eu. Havia pessoas que ajudavam outras, que queriam mudar o mundo, fazê-lo melhor, como você quer… não há uma única solução para esse problema. E a sua, a sua… tem falhas.
— Falhas?
— Luce, humanos são como vírus. Crescem rápido, espalham rápido – Lyra pediu tempo, não foi? – e basta um casal para que uma multidão apareça em menos de cem anos. Destruir tudo não vai adiantar. O mundo é vasto demais, e há locais inexplorados ainda. Claro que haverá sobreviventes. – Chris disse pausadamente.
— Não haverá. Até lá serei onipresente, onipotente. É a minha evolução natural.
Chris sentiu um arrepio. Onipresença. Onipotência. Ele queria ser Deus. Simplesmente isso. Não… era pior. Ele seria deus. Era a evolução natural.
Não sabia mais o que dizer, o que fazer, o que perguntar para ganhar tempo. Aquela informação o atordoou completamente. Lyra estaria bem?
— Pai, eu sei que você quer me enrolar para que aquela garota venha roubar meu coração. Eu… o que foi que eu fiz de errado, pai? Por que quer tanto me matar?
A expressão foi de dor. E Chris não sabia como reagir a ela.
— Eu te desapontei? Como, se fiz tudo isso por você?
— Mas não é certo, Luce. – Chris tentou explicar.
— E o que é certo? As pessoas agirem como agem? Destruindo-se em conflitos?
— As coisas são assim, imperfeitas… os humanos são imperfeitos. Não são máquinas… como…
— Como eu. – Luce fitou o chão. – Mas mesmo assim, eu deveria aceitar essa realidade calado? Eu que nem sou como vocês, eu percebo que está tudo fora do eixo… não concorda?
Chris negou.
— Pensei que… no fim, eu só queria que me amasse. Mas eu sou… só uma máquina, não é?
Mas eu te amo, Luce. – as palavras ficaram presas na garganta. Não sabia como dizê-las.
— Mas… – tentou, depois de uns instantes.
— Não, você não me ama, não como ama aquela mulher. Você tem pena de mim. Isso…
— Claro que não vou te amar como a amo, as coisas são diferentes. Eu a amo como um homem ama uma mulher. E eu te amo como um pai ama um filho…
— Não entendo isso, esse… amor.
— Você é só uma criança. Só um garoto, ainda tem muito que aprender, que viver.
— Como, se você quer me destruir?
Eu não quero te destruir, pelos infernos! – Chris berrou. – eu não tenho escolha, é isso. Eu nuca tive escolhas, e as poucas que tomei foram todas erradas- – hesitou.
— Pai, há como se livrar disso tudo, de todo esse peso.
Sim, há.
— Como? – Chris olhou sua esquerda. A solução de Luce seria igual a sua? Seria…
Morrer?
— Seja parte de mim.
Chris o olhou.
— Parte de… você? – franziu o cenho.
— Sim. – Luce sorriu com a ideia. – Podemos ser um só, podemos ter o mesmo corpo, a mesma mente… você não teria que sofrer mais.
— E como… isso aconteceria?
Chris tinha medo do que poderia ser, mas também tinha uma ideia… se fosse o que deduziu, talvez…
— Meu coração lhe assimilaria. Seu corpo morreria, mas sua mente, sua alma ficaria sempre comigo, não seria maravilhoso?
De novo aqueles pensamentos infantis. Luce era tão esperançoso, sempre esperando o melhor de Chris. Os olhos castanhos brilhavam, havia um sorriso em seu rosto… aquilo era familiar, nostálgico.
Chris conhecia aquela expressão, como não conhecer? Era a sua. A sua quando comprou a loja. Quando montou seu primeiro invento. Quando concluiu o mecanismo Ristevski. Quando Luce funcionou pela primeira vez.
Luce era como ele… Luce era ele.
Era seus sonhos, todos condensados. Como os destruiria? Era possível destruir seus próprios sonhos?
Já tinha a resposta.
— Eu… não quero mais sofrer, Luce. Nunca mais. – Chris o olhou.
— Sei que não. – Luce sorriu.
Afastou um passo. Abriu o casaco, o colete e a camisa por baixo de tudo, calmamente.
Então passou o indicador pelo peito nu, do pescoço ao umbigo. Uma linha negra surgiu, e quando ele tirou o dedo, a carne desapareceu, e deu lugar ao metal.
E o metal se abriu, e Chris pôde ver a esfera que encontrou na margem do rio Ruby, há um milênio.
Ainda era o mesmo cristal com a mesma fumaça rodopiante. Mas havia fios e mais fios ao redor, quase a cobrindo totalmente.
Chris se aproximou, ficando a centímetros de Luce.
— Você não vai sofrer mais, pai. Eu prometo. – Luce sorriu.
— Eu te amo tanto, filho. Tanto. Amei-o desde o início, desde bem antes de fazer você viver. Amei mais que qualquer coisa. Mais que a mim mesmo. Você é meu sonho, Luce. Meu sonho, minha criança. E você é tão inocente, tão puro. E por te amar demais, eu… preciso te destruir. – Chris engoliu toda a emoção que lhe subia a garganta.
E enterrou a mão no peito de Luce.
Ao mesmo tempo que várias coisas aconteceram.
Sua mão queimou, mas persistiu, puxou a esfera com força, com vontade, com lágrimas nos olhos.
Luce tentou lutar, mas não conseguiu, foi tudo repentino demais. Desabou em cima de Chris, que caiu de joelhos, mal suportando o peso.
Foi quando uma das paredes abriu com um estalo; era uma porta. E Catherine saiu de lá aos tropeços.
E quando Lyra Thrower chegou à sala.
E quando a explosão aconteceu.



Próximo capítulo dia 26/03/14


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