—
Hey
Peg.
O animal
virou a cabeça, procurando a voz.
— Aqui,
garota. – Lyra se aproximou do falcão, que lhe bicou o dedo. – continua afiada,
ao menos. – ela levou o dedo cortado à boca.
Peg era um
belo exemplar de falcão-peregrino, que ela ganhou há dez anos. Sempre saíam
para caçar pela floresta élfica.
Era noite
cerrada, e Lyra não queria dormir. Subiu ao viveiro de Peg principalmente
porque já estava em Raython há uma semana e ainda não a visitara.
— Desculpe
não ter vindo antes. Certo, pode me bicar de novo, eu mereço, vai. Então,
cuidaram bem de você? – Lyra acariciou suas penas rajadas.
— Eu me
assegurei pessoalmente disso, e tenho um monte de cicatrizes pra provar. Peg e
eu nos demos bem depois de umas duas semanas de, hã, brigas. – a voz divertida
disse.
Lyra riu e
olhou pra trás.
— Achei
que ela gostava de você, pai.
— Hã, hã.
Ela não gosta de ninguém. – apontou a ave.
Raziel
Thrower era alto como quase todos os homens da família, e tinha um porte bem
altivo, mas não era tão imponente. Seus ombros eram mais relaxados, e sempre
havia um sorriso bobo entre a barba que deixava por fazer. Seu cabelo era uma
juba negra, fios esparramados para todos os lados. Crescidos, mas não tanto. Como
a avó dizia? O imperador do desleixo. Só que tudo isso desaparecia quando se
fitava os olhos dele. Azuis como céu de verão, limpos e faiscantes.
Ele estava
sem o casaco e o cajado que o denominava imperador. Vestia uma camisa preta
simples, calças da mesma cor. Ele andou até a seteira que nunca foi usada e se
sentou no beiral. As pernas pra fora, pendendo.
Chovia
como sempre, raios caíam como sempre. Era a maldita Raython, cinza e úmida por
toda a eternidade.
Lyra
observou o pai e deixou Peg. Sentou-se ao lado dele.
— Você não
tem saído muito esses dias, estou seriamente preocupado com você, moça.
— Ah. Eu,
sei lá.
— Phyreon
fez algo com você?
— Nem
olhou na minha cara. Nem dirigiu a palavra. Só pegou a coisa e enfiou no… na
sala.
— Hm.
Quase tive que bater na sua avó pra te deixar em paz, sabia? Ô velha, viu.
Lyra riu.
— Então é
por isso que Lady Elektra não está no meu pé?
— Sim. Mas
Lílian andou falando demais, ela soube de coisas.
E está louca para te bombardear de perguntas.
— Típico.
Sabe, pai. Esse mês. Essa foi a coisa mais… mais estranha e mais fascinante que
eu já vivi.
Ele
assentiu para que ela continuasse.
— Era
outro mundo. Não só outro lugar. Tudo era tão diferente… as casas, as pessoas…
principalmente elas. E havia tantas coisas estranhas, tipo bolas de vidro que
acendiam com eletricidade e iluminavam tudo sem magia. Eles… eles faziam coisas
mágicas sem usar magia, entende?
Lyra fez
uma expressão confusa, e seu pai a imitou.
— Não…
— Esquece
então. – ela suspirou. Era a primeira vez que falava de lá. – O nome da cidade
é Rhenium Valley. E havia uma escola chamada Aurum. Havia porque ela foi
praticamente destruída.
Raziel
ergueu as sobrancelhas.
— E o
uniforme era legal, eu até trouxe um. Ah, assim. Nós demoramos demais porque
perdemos o orbe, e não sabíamos como achar. E a sorte nossa foi que achamos uns
garotos por lá. Aí esses garotos resolveram nos ajudar.
— Assim,
do nada?
— Não… é
que um deles conhecia… isso aqui. – fez um gesto vago com a mão, para a treva
lá fora. – Raython, os Cinco Impérios, Phyreon.
— Como?
— Ele
tinha lido um livro de fantasia. É, nossa história com H maiúsculo aqui é
estória com E minúsculo por lá.
— Não sei
se é bom ou ruim… – ele ponderou.
— É bom,
acredite. Eles nos dizimariam pelas minas de Mithril, que já são poucas. Pai,
você não tem ideia do que eles são capazes. Mesmo sem magia. – ela olhou a
chuva, os raios que mostravam as montanhas em flashes rápidos.
Raziel a
olhou. Lyra estava tão diferente. Tão mais calma, mais solene, e não queria
matar Pyro assim que o via. Bem pelo contrário, eles estavam cochichando pelos
cantos há alguns dias. Aconteceram coisas demais naquele mês, e ele não queria
que ela despejasse tudo de uma vez. Queria só descobrir o que a deixava assim,
tão…
Quebrada.
— Fale
mais dos garotos que acharam vocês.
— Eram
três. Os nomes são esquisitos – ela riu – tinha a menina, Lavender. Nós
chamamos de Liv. E o vizinho milionário deles, Archibald. Archie. Ele gostava
de Liv, mas tinha vergonha de dizer… e tinha… o irmão de Liv. O que leu o
livro. Theophilo. Theo.
Raziel
notou pelo tom de voz que ela usou, que chegara ao ponto.
— E como
eles eram?
— Ah,
Archie era loiro tipo a vó Windy. Liv tinha o cabelo curtinho, pai! Tipo, tipo…
tipo o de Viktor! E uma franja bonitinha assim – gesticulou e uns cachinhos nas
costeletas assim. Theo também tinha o cabelo curto, castanho escuro. Aí ele
partia pro lado de cá, mas até ele chegar na escola já tava tudo bagunçado. E
ele usa óculos, daqueles quadradinhos bonitos tipo a tia Amber. E os olhos dele
e de Liv eram verdes. Um verde diferente dos de Lílian… era mais escuro, e era
tão lindo. – ela mordeu o lábio.
Pausa.
— Aí – ela
suspirou. – nós ficamos na casa de Liv. E passamos a ir à escola também, pra
enrolar os pais deles, e ah. É muita coisa, pai.
— Estou
vendo. Não precisa falar tudo.
— Não né?
Você só quer saber o que me deixa mal, não é?
Ele
assentiu.
— Juro que
no começo era à toa, pai. Theo ficava da cor do cabelo de Pyro quando olhava
pra mim, sabe? E aquilo era tão engraçado porque ele olhava pra mim o tempo
todo, sei lá, queria saber se eu era de verdade, alguma coisa assim. E tinha
ainda a gemarkeerd. Eu não sabia se ele estava olhando a minha perna ou a minha
marca.
— Hmrum. –
Raziel ponderou.
— Aí
assim, sabe como eu sou né? Eu queria brincar com ele um pouco, mas… desisti.
Raziel
ergueu as sobrancelhas.
— É.
Pensei, sabe? Ele não merecia isso. Só que aí… ele foi me conquistando. Assim,
do jeito dele. Ah, eu não falei de Amy, que é irmã de Archie…
— Ouvi
falar de amarantos em Magma da boca da sua mãe, pode pular. – ele cruzou as
mãos atrás da nuca.
— Mas é.
Eu falava de Theo, certo? Então. Um dia desses, eu o beijei. Antes não tivesse.
Eu sou estúpida demais, pai. Demais.
Faço tudo errado desde quando? Desde quando nasci né? Pois é, pra consolidar
tudo, eu fui lá e beijei Theo. Muito bem
Lyra Thrower. Você acabou de se lascar. – ela disse num tom grosso,
debochado – eu quase ouvi os deuses falarem no meu ouvido. E sabe por quê?
Raziel
negou, e um raio caiu ali perto.
— Porque
eu senti. Eu senti que Theo seria aquilo que eu procurava, sabe? Eu era a
primeira garota que ele beijava, deu pra notar. E ele ficou nervoso, e travou,
e foi tudo tão… tão fofo? Aquilo me encantou. O jeito dele me encantou. Muito
legal quando você acha o grande amor da sua vida e ele está a meio mundo de
distância. Tão longe que você não tem ideia de onde é e como chegar lá. Eu
nunca, nunca me senti tão fraca na minha maldita vida. – cuspiu tudo, e
encostou na parede.
Raziel
ficou calado por algum tempo, e Lyra tirou algo do bolso.
— Ele me
deu isso.
Era uma
peça metálica redonda, dourada. Havia uma corrente e uma coisinha em cima, que
Lyra apertou. A tampa abriu, e lá dentro havia símbolos estranhos.
— Eles
chamam de relógio de bolso. Serve mais ou menos como uma ampulheta. Daí você
tem que dar corda assim – fez um gesto estranho – para não parar de rodar.
Era
estranho, mas interessante.
Doía em
Raziel ver a filha assim. Ele sempre disse que ela encontraria o rapaz certo, e
quando ela encontrava… isso. Queria fazer algo por ela, sua garotinha.
Raziel se
ajeitou na janela e puxou a camisa, enquanto ela fitava o relógio. Tirou a
camisa por completo, e se virou de costas.
— Eu nunca
te mostrei, não é?
— Não… – a
voz de Lyra foi um sussurro.
Cicatrizes
cobriam as costas de seu pai. Cicatrizes e marcas. Mais perto do quadril era
visível as linhas da runa que o marcava como avatar de Thalion. E mais pra
cima, cicatrizes negras, escuras, retorcidas. Aumentavam na altura das
espáduas. Era… Lyra se sentia mal só de olhá-las.
— As asas.
Quando elas saíram foi o que rasgou até mais pra baixo, aqui. – apontou – e nas
espáduas foi quando eu pedi para Phyreon cortá-las.
Ele
suspirou, fazendo uma pausa. Olhou a filha nos olhos.
— No dia
que eu ganhei essas asas, eu perdi um amigo. Mesmo que fosse algo falso,
armado, ele era meu amigo, ele foi meu melhor amigo. Perdi assim, de repente,
como você perdeu Theo. Mas você sabe qual é a diferença entre nossas perdas?
Ela
balançou a cabeça, negando.
— Você
perdeu Theo para a distância. Eu perdi Viktor para a morte. Entende? Eu não
posso trazê-lo de volta. O máximo que pude fazer foi quase criar a filha dele e
dar o nome dele pro seu irmão. E o que você pode fazer, Lyra? Theo está aí,
está esperando você. Você pode
trazê-lo. Não desperdice isso.
— Eu
prometi que… ia voltar para entregar o relógio. – ela olhou pra baixo.
— Você é
uma Thrower.
— E
Throwers cumprem suas promessas. – ela ergueu os olhos.
Raziel
aprovou a expressão dela. Firme, como ela costumava ser. Lyra fez uma manobra e
saiu da janela.
— Só posso
te dar dez anos, Lyra. Você precisa dar um herdeiro a Raython. E eu não quero
ficar nessa de imperador por muito tempo não, hã? – ele vestiu a camisa.
— Pode
deixar, pai. Mas eu não tenho ideia de como começar.
— Ué.
Primeiro você tem que achar esse lugar num mapa, não?
— Sala de
mapas. Biblioteca. Isso. Obrigada pai, amo você. – ela o beijou na bochecha e
deu boa-noite a Peg. Desapareceu fazendo um barulho infernal pelas escadas.
— Como é
que é que ela disse que era o nome daquele moleque? Teofi- como era, Tiny?
—
Theophilo, estúpido. Eu estava ali no cantinho, e você do lado dela não
entendeu. – ela andou até a luz.
— Você
deveria ter entrado, marmota. – ele a olhou.
Phantine
Watari era uma mulher baixinha, mas muito voluptuosa. Era linda, escultural,
mesmo depois de três gestações. Tinha os olhos da cor de anil e os cabelos vermelhos
como sangue fresco. Longos, desciam até abaixo dos quadris. No alto da cabeça,
havia dois fios que cresciam pra cima e caíam em direções opostas, formando
algo bem parecido com um par de antenas de inseto. Ela usava um vestido pesado,
vermelho também.
— Ela não
ia falar nada comigo aqui, Raz. Você sabe. – Phantine suspirou. – eu sou a mãe dela. – franziu o cenho. – Eu… ah,
Raz. Eu queria tanto ficar mais perto deles, os três.
— Nós
escolhemos isso, lembra? – ele a abraçou pela cintura. – Nós concordamos.
Sabíamos que seria assim. Eu raramente vejo meu pai. Kaz quase nunca vem até
aqui. Pyro quase nunca conversa comigo, e se não fosse você, eu não saberia que
ele estaria daquele jeito.
— Você
disse pra Lyra sumir de novo atrás desse menino, mas não pode dizer o mesmo a
ele. Pyro vai custar a se curar. – Phantine o olhou.
— E até
Lílian. Até ela ficou abalada. Queria saber o que eles passaram. Há mais coisa
que aparenta. E Pyro veio com uma fratura que foi colada errada. Isso significa
que ele usou a magia de cura rápido demais. – Raziel disse, clínico.
— O que
indica que ele estava lutando. – Phantine concluiu. – vou fazê-lo falar. – ela
afagou os braços do marido carinhosamente.
— Muito
bem, agora pra cama. Vai ficar aqui até quando?
— Amanhã
de manhã.
— E é
agora que você me fala isso? – ele a beijou nos lábios seguidas vezes, e entre
um beijo e outro murmurou algo parecido com Sellphir.
E outro
raio caiu, iluminando Peg.
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