O Orbe de Reidhas, Spin-off #1 | Capítulo XXXVIII

XXXVIII

Rhenium Valley, Julho de 1893






Theo estremeceu, e abriu os olhos.
Um segundo depois, o barulhento despertador soou, forçando-o a se levantar.
Desligou-o com um tapa forte depois de duas tentativas e tateou o criado-mudo atrás dos óculos. Depois esfregou os dedos na corrente de prata do pescoço, descendo até os dois pingentes.
Era um hábito quase religioso. Aquelas asinhas eram tão leves que ele mal as sentia, e sempre conferia se ainda estavam lá.

Levantou coçando a cabeça, pegou a toalha e entrou no chuveiro. Era tudo sempre tão silencioso que ainda lhe dava certa aflição. Ainda sentia falta dele.
Algumas coisas mudaram nos cinco anos que se foram, outras não. As pessoas, principalmente, elas não mudaram. Ninguém soube o que realmente aconteceu naquela semana tão distante, e várias histórias foram inventadas. O país quase entrou em guerra por tais histórias, aliás. Theo não gostava da hipótese de guerra, mas quem ia acreditar em tudo que aconteceu?
O exército ainda ficou atrás dele por alguns meses, depois eles descobriram coisas mais úteis pra fazer. Eles sumiram mais ou menos quando a reforma da casa de Archie acabou. Theo estava precisamente desocupado, ao contrário dos soldados. A Aurum teve noventa por cento dos prédios danificados, e alguns condenados. A escola só voltou a funcionar dez meses depois, em condições precárias.
Nesse tempo Theo passou a visitar o professor. Como os dois tinham gostos em comum, a convivência foi fácil. Em pouco tempo Theo passou a trabalhar no sebo onde comprava a maioria dos seus livros, e dividia seus dias entre visitas, leituras, chá e o tique nervoso de esfregar o pulso.
Ele realmente parecia bem, enquanto não procurava o relógio de bolso ou coçava a cicatriz. A verdade era que ele fingia estar bem, e se esforçava nisso.
Em pouco tempo o professor passou a apresentar problemas de saúde decorrentes do esforço que fez naqueles dias todos. Lílian curou a inflamação na perna dele, mas disse a Theo que a cura era temporária. O corpo dele já não era tão resistente. As visitas se tornaram frequentes até o dia em que Theo resolveu ir morar com Rutherford.
Seus pais aprovaram a ideia sem relutância. O professor não tinha ninguém por ele, nem filhos nem irmãos, e eles acharam melhor pra Theo morar na cidade.
E foi assim que ele passou a habitar o sobrado com cheiro de livros velhos, que aliás, não mudou em nada.
Theo acabou o estudo básico, e não permaneceu na Aurum para começar a graduação em engenharia, como Archie e Liv fizeram.
Ah, e Amy também. Apesar de que ela formou três anos antes do previsto, pedindo milhares de desculpas por isso. Amy conseguiu se recuperar com certa facilidade. Ou ela fingia também? Theo nunca soube com exatidão.
Theo viveu com o professor por aproximadamente três anos, até que ele sofreu um ataque cardíaco fulminante, e o deixou.
A casa e todo o patrimônio foi herdado por Theo, que não sabia disso. Ele não queria ficar lá, aquela casa era cheia de lembranças. Mas também não queria voltar para a casa da mãe. Decidiu ficar depois de Liv o convencer. Ele deveria manter o legado do professor, e todas suas pesquisas vivas.
Seria mais fácil se não houvesse um Thrower a cada parágrafo escrito. Mas nada era fácil, ele já devia ter se acostumado.
Theo comprou o sebo do velho dono quando ele disse que fecharia as portas e se aposentaria, mudaria para o litoral. Na verdade, comprou o prédio todo, que tinha apenas um andar por cima. Era espaçoso, e Theo manteve fechado, usando como depósito temporário. Algum tempo depois, alugou o apartamento para uma família.
Como era só ele, a pouca renda do sebo era suficiente, mas seu pai estava preocupado com o futuro do filho. Era pior que imaginou quando viu Theo dizer que não queria ser engenheiro porque gostava mais de livros do que de contas, isso há mais de dez anos.
Mas ele não se importava, não com isso. Aliás, não andava se importando com nada desde que enterrou seu professor preferido.
Saiu do banho e penteou o cabelo. Theo não mudou muito, só suas feições que se tornaram definitivamente adultas, e os músculos dos braços e costas cresceram, pois ele passou a treiná-los.
Com Tom Redworn.
Os dois nunca viraram amigos definitivamente, mas um visitava o outro. Era estranho, mas era algo. Tom não suportava muito bem a ideia de ser o único a saber dos acontecimentos no observatório dentre seu círculo familiar. E ele sempre ia atrás de Theo para despejar um pouco daquilo fora, e pegar alguns conselhos.
“Você tem que mexer os dedos, tipo um exercício diário, ou essa tremedeira não vai parar” – Theo se pegou um dia dando instruções sobre como lidar com choques elétricos. – “Minha mão quase não treme mais, mas a queimadura ainda coça como os infernos. Se eu soubesse tinha dado o braço esquerdo”.
Foi por aí que eles decidiram treinar os nervos danificados juntos. Claro que Theo ainda apanhou muito, mas com o tempo ele melhorou.
Desceu as escadas e preparou o café. Deveria limpar a casa naquela noite, sua mãe viria pela manhã seguinte. Ele sempre limpava tudo antes que ela chegasse, assim ela o olhava com desdém e dizia “eu disse que ia limpar tudo, seu chato”, e sorria. E então ela ficava ali a tarde toda ainda procurando alguma coisa para limpar, ou conversando com os vizinhos.
Depois de se alimentar, pegou as chaves da loja e saiu, lembrando que precisava visitar a irmã no domingo.
Liv e Archie se casaram há alguns meses, numa cerimônia bem simples e escondida no fundo da casa dele. Archie acabara de se formar, e tinha um cargo alto na empresa do pai, algo que ele realmente gostava de fazer. Lavender ainda estudava, e dividia o tempo com sua marca de roupas.
Uma engenheira estilista. Ela sempre dava de ombros quando Theo a perguntava por que ainda estava na Aurum, se as roupas dela faziam mais sucesso.
Ele invejava isso, a capacidade dela de fazer as duas coisas sem problemas.
Theo não via Amy desde o casamento de Archie, e na ocasião ela quase não pôde vir, pois estava enterrada até o pescoço de projetos secretos. Assim que Amy se formou, recebeu um monte de convites de todos os lugares possíveis, mas só um a agradou.
O convite do exército.
Ela basicamente tomaria o lugar de Catherine Hemingway, e inclusive os projetos inacabados dela, que ninguém na face da Terra era capaz de compreender. Amy aceitou com determinação, apoiada por Theo e Archie, e saiu de casa sob protestos do pai, que ela ignorou.
Fechou a porta e pegou o jornal, como sempre. Atravessou a grama e antes que saísse na rua, ouviu a voz.
— Bom dia, Theo.
Tirou os olhos da manchete e olhou o gramado ao lado.
— Bom dia, Danny. – acenou.
— E as notícias?
— Parece que o West Linder ganhou dessa vez. – ele sorriu e ela revirou os olhos.
— Estou falando de notícias decentes, não de jogos – ela cruzou os braços, depois de deixar o lixo na lixeira.
— Oh, desculpe. Nada de mais então. Preciso ir. – acenou e saiu na calçada.
Danielle morava ali desde a época do professor, mas sinceramente Theo só reparou nela depois que ele morreu. Ela era uma garota de dezenove anos, com olhos cinzentos e cabelo cor de areia, cheio de cachos. Theo tinha certeza que ela era apaixonada por ele, e por isso nunca ousou se aproximar dela, nem como amigo.
Não queria isso pra ela.
Foram seis. Seis garotas nesses cinco anos, e a primeira foi depois de dois anos e muita insistência do professor. Os relacionamentos foram diferentes, uns mais curtos, outros mais longos e profundos. Mas todos eles acabavam mais ou menos do mesmo jeito.
Quando elas não conseguiam conter a curiosidade e perguntavam por que ele tinha duas asinhas de anjo como pingente, ou por que vivia coçando aquela cicatriz no braço.
Exatamente como Archie profetizou. Ela foi a garota mais bela que já namorou, e a que mais o cativou. Cada uma tinha suas qualidades e chamava a atenção, mas…
Nenhuma delas dava choques.
Nenhuma delas quebrava seu nariz.
Nenhuma delas tinha o sangue grosso e o pavio curto dos Thrower.
Com pouco mais de dez minutos andando, chegou à porta do sebo velho.
Revirou o molho de chaves, e antes que achasse a certa, ouviu o berro.
Theeeo! Olha, Theo! – a menina pulou os dois degraus da escada do lado e ficou ali pulando ao lado dele.
— Que foi, pestinha?
— Eu consegui resolver minha primeira integral definida, Theo! Olha, olhaaaaaa!! – ela viu que ele ainda abria a porta e chutou a canela dele.
— Ei, espera! Integral indefi- – Olhou bem a menina que nem batia na sua cintura. – Luce, Você tem cinco anos.
— E daíí? Olha! – estendeu o papel e ele pegou, desistindo.
Lucely Norling era ruiva e sardenta como a mãe, mas não usava óculos e graças a todos os deuses, seu cabelo era liso. Ela o olhava, rindo com um buraco onde faltava um dente.
No papel, uma conta gigante começando com um S estranho e cheia de garranchos. Luce nem sabia escrever direito. E já fazia aquelas contas.
Theo franziu o cenho. Não podia esperar menos que isso.
— Você devia estar rabiscando paredes e não resolvendo isso aqui. E o que é isso?
— Você não sabe o que é uma integral? – ela fez um gesto de indignação cômico.
— Não.
— Integrais são somas de aproximações sucessivas utilizadas para calcular a área sob a curva de um gráfico no plano cartesiano, como é que você não sabe isso? – ela revirou os olhões da cor de mel.
— E pra que eu vou querer saber calcular áreas embaixo de curvas em gráficos? – Theo cruzou os braços. Ela era muito engraçada.
— Geralmente em problemas de física, tipo pra calcular a posição exata de um objeto em movimento, e mais um moooonte de coisas. – ela pulou para pegar seu precioso papel.
Theo o ergueu mais alto que a mão dela alcançava.
— Por acaso o seu pai sabe que você está fazendo esses cálculos de engenheiro?
— Não são… – pulo – cálculos… – pulo – de engenheiro – pulo –… ainda!
Luce não podia chamar a atenção para si com sua genialidade. Era perigoso para seus pais.
Theo soube que Cat estava esperando uma criança alguns meses depois que ela e Chris deixaram Rhenium Valley sob identidades novas, e isso o assustou, já que Chris lhe disse que ela não podia ter filhos. Eles queriam ficar escondidos por mais tempo em uma cidade de interior longe de tudo, mas a gravidez forçou-os a morar em uma cidade maior até a criança nascer.
E Theo só viu a nova família no funeral de Rutherford, quando Chris – agora Albert Norling – disse que queria voltar a Rhenium Valley. Então Theo deixou a casa em cima de sua loja para eles morarem.
— Ah, não. Aham. Seu pai vai ficar sabendo disso.
— Nãããão Theo, por favor! Pai não gosta quando eu leio esses livros… – ela choramingou – mas eu gosto tanto deles…
— Só se você não mostrar pra ninguém que fez essas contas.
Ela assentiu, e ele entregou a folha.
— Ninguém entende mesmo, e eu não tenho pra quem mostrar. E se você contar pra mãe eu… eu não faço as contas dessa sua loja velha cheia de livro ruim! – ameaçou, as mãos na cintura, como se fosse gente mesmo.
— Você está me ameaçando?
— Sim. E suas contas saem todas erradas quando você faz sozinho que eu sei.
O pior de tudo era que ela tinha razão.
Theo suspirou.
— Tchau pra você. – ela mostrou a língua e saiu correndo.
— Ei, onde você vai? Luce!
— Biblioteca! – ela berrou sem parar de correr.
Não passou trinta segundos e o pai dela apareceu lá embaixo.
— Luce. Sumiu. De novo.
Theo assentiu.
— Pra lá. – apontou, enquanto batia o tapete da porta.
— Biblioteca, não é? Só a levei lá UMA vez, a pestinha decorou o caminho. Como? – os olhos cor de mel o fitaram, indignado.
Chris agora tinha muito mais cabelo branco que castanho, e os fios estavam longos. Ele fazia um rabo-de-cavalo às vezes, mas geralmente usava solto. Também usava o óculos pince-nez do professor, apesar de não precisar, e luvas. A queimadura nunca se curou completamente, mas ele conseguiu recuperar o movimento da mão direita perfeitamente. E agora ele nunca deixava a barba crescer.
Ninguém conseguia associá-lo a Christopher Fairmount, também porque o relojoeiro foi esquecido há anos. A relojoaria foi a leilão público, e Rutherford comprou-a. Tiraram tudo que havia lá e venderam-na de novo. As tralhas ainda estão no sobrado, praticamente intocadas.
Mas a mudança maior ainda ficou por conta de Cat. Ela inventou alguma coisa que fazia o impossível: deixar o cabelo dela liso. Só isso a transformou em outra pessoa, em uma ruiva arrogante comum, e muito bonita também. Ela nem precisava esconder todas as sardas com maquiagem.
E ela teve ataques quando soube que estava grávida. E que fez questão de ir até o médico que disse que era estéril para ele explicar aquela barriga toda.
Cat agora era Lawrencia, e dava aulas de física na Aurum. Não foi despedida ainda por ser muito inteligente, e errava de propósito para parecer humana. Mas seus métodos de ensino eram… pouco ortodoxos.
Chris trabalhava numa usina, e tinha três horários diferentes. Quando ele ia trabalhar às três da tarde, como naquele dia, cuidava de Luce pela manhã. E quando nenhum dos pais podia olhá-la, ela ficava – quase – quieta com Theo na loja.
— Ela estava resolvendo integrais, Bert. – acostumou-se com o nome novo, apesar de ainda esquecer às vezes.
Bert. Odeio esse nome. – cuspiu. – Integrais, hã? Muito bem senhorita Lucely.
— Vocês deveriam ter outra criança, pra brincar com ela.
— Acho que não, Theo. Luce foi… um milagre, eu acho. Apesar de todo o aperto que passamos naquela época. Cat realmente tem dificuldades pra engravidar. Nós tentamos, sabe? Apesar de que ela não gosta dessa coisa de cuidar de bebês.
Milagre. Chris sempre se referia a ela assim. Theo não se assustou com o nome da criança, achou até um tanto óbvio. Chris voltou a sorrir depois que ela nasceu, e isso era tudo que importava. E ele amava a pequena mais do que qualquer coisa.
— Sei. Mas dê um jeito nela, nem tem todos os dentes na boca e é arrogante que nem a mãe. Assim não terá muitos amigos além de velhos tipo eu.
Chris riu.
— Você é um bom sujeito, mas tem razão. Ela não tem que ter amigos de trinta anos.
— Vinte e três
— E nem você amigos de cinco. E aquela sua vizinha loura?
— Anda muito bem, obrigado. – Theo consertou os óculos e tentou entrar na loja.
Chris o puxou pela camisa.
— Volte aqui Theophilo – disse entre dentes. – qual é, vai que dessa vez dá certo?
— Você disse isso nas últimas quatro vezes, maldito. – Theo praguejou.
— Certo, certo. O negócio é não desistir, veja meu caso.
— Ah, sim, seu caso é beeem comum. Vá atrás de Luce, hã? Ela já deve estar na biblioteca.
— Eu vou, mas voltarei. E se eu te ver coçando essa cicatriz de novo, vou quebrar essa vidraça com a sua cabeça.
— Mas eu não-
Olhou o pulso direito. Seus dedos na pele escura. Quando começou a coçar? Era involuntário agora. Um hábito, religioso.
Soltou a mão esquerda.
— Até mais, Theo – Chris foi atrás da filha.
Theo entrou na loja, cheirando seus livros velhos. Gostava daquele cheiro, era quase viciante.
Ele não tinha lá muitos clientes, mas os poucos eram fiéis. Theo procurava em outras cidades os livros que eles pediam, e sempre conversava com eles. Até ajudava em trabalhos de literatura.
A manhã transcorreu bem, e ele riu quando viu Chris passar com Luce nas costas, feito um saco de farinha. A expressão da menina era de ódio, e havia uma ameaça nos seus olhos. Depois ele pegou sua escada e resolveu limpar a estante do fundo, que era a mais alta e tinha os exemplares mais raros.
A porta rangeu, abrindo.
— Bom dia – Theo estava descia as escadas, de costas. – Posso ajudar?
— Eu procuro um tal de Steamwork, me disseram que ele estaria aqui. – Era uma voz feminina, mas era… Theo franziu o cenho e se virou.
As mãos dela estavam na bancada, uma segurando uma corrente de ouro e um relógio de bolso dourado.
Nos lábios vermelhos um sorriso e nos olhos, chamas.
Chamas azuis.
— Throwers não quebram promessas, apesar de demorarem para cumpri-las. – Lyra disse.
Lyra, Lyra Thrower.
— Eu sei.
Sempre soube. Sempre esperou.
Sempre acreditou.
E agora, finalmente estava pronto. Pronto para cortar seu fio de Ariadne.
Pronto para ir.





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próximo capítulo


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Tipo, acabou aqui. Mas ainda tem uma coisinha :3

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